quarta-feira, 28 de agosto de 2013

O DIA



Aqui está sol, mas lá ao fundo está escuro. Aquele azul sinistro do céu que se fecha para chover.

As nuvens descem, fechando o cerco denso, ameaçador. Os sentidos alertam! Pela observação tenta-se interpretar os sinais. Na brisa procura-se o cheiro da chuva. Mas a atmosfera continua seca. O sol a pino derrama luz e calor sobre as cabeças. Eu protejo-me sob a sombrinha.

Um jovem passa numa motoreta. Tronco nu, com os músculos tensos estremecendo com as vibrações provocadas pelo péssimo estado do empedrado. Sorte esta ser uma rua pavimentada, mesmo que em péssimo estado; no resto do bairro são de terra batida.

Quedo-me olhando o tronco moreno afastar-se e desaparecer ao voltar a esquina; leva consigo a virilidade jovial, garbosa e envaidecida de ser desejada. Vejo então que outro jovem vem percorrendo o mesmo caminho que eu. Magro, moreno também. Pelo trajar e pelos modos, percebo que irá seguir em frente, em direcção à comunidade (é como chamam às favelas, no politicamente correcto), enquanto eu voltarei à direita, entrando na minha rua. O meu passo é mais lento... demorado... com uma paragem aqui, outra ali, de modo a observar algo com mais atenção e delonga; não importa o quê, um pássaro num ramo, uma sombra se alongando num formato peculiar, um buraco no muro. E o jovem esguio, de andar felino e ágil, ultrapassa-me, mesmo quando eu paro à esquina... para me decidir a voltar a casa.

Todos seguem os seus caminhos. Passamos como estranhos, que somos, uns pelos outros. Vultos que se deslocam na cidade doente, como delírios de moribundos no limbo duma UTI. Todos esperam, numa tímida e fugaz troca de olhares receosos, um sinal de cumplicidade e amizade. Mas todos receiam a iniciativa do gesto. Ínfimos roedores temerosos, nos recolhemos numa fuga para o vazio lacónico dum olhar disperso – algures - noutra direcção sem direcção alguma.

E caímos na tristeza amordaçada e negada. Na esperança – ou deverei chamar de ânsia? – dum outro encontro ocasional e também inglório. De novo e de novo e de novo. Sem a coragem de chegar em frente, parar e dizer: “Olá! Gostei de te encontrar aqui, agora. Algo me cativou em ti. Se quiseres podes continuar o teu caminho, mas se preferires ficar e falarmos um pouco... qualquer altura é boa para fazermos novos amigos. Ou talvez apenas saudarmos um estranho na rua.”

Paro na junção das duas ruas – a minha de terra batida, esburacada, enlameada e com poças de água suja, das chuvas recentes – olho o rapaz afastar-se na direcção da favela, no seu passo rápido e elástico.

Lembra-me a minha recente ida àquele território temido, receado por todos. Um fim de tarde de sábado e, como todas as folgas, entediante com a modorra própria dos desocupados. Apenas os miúdos se agitavam, excitados, olhando o céu e gritando, brincando com as suas pipas que esvoaçavam bem alto, num céu que ameaçava chover, mas não o fazia. Eram de várias idades, tamanhos e tons de pele, no amplo espectro da tez deste povo de miscigenação. Lindos e alegres. Simplesmente alegres.

Foi isso que registei, a alegria verdadeira das crianças. Também o sorriso espontâneo das gentes que retribuíam a saudação, quando eu soltava um “boa tarde” inesperado a quem me cruzasse no caminho. O aspecto descuidado dos casebres, que se encostavam uns aos outros, ladeando as ruas estreitas e desordenadas, não me era estranho. Novidade nenhuma nisso. Nem outra coisa esperaria, num bairro de gente esquecida pelo mundo, marginalizada da sociedade; uma sociedade cínica e que ainda não perdeu os tiques segregacionistas duma tradição esclavagista que demora a morrer, disfarçada numa hipócrita pseudo-tolerância.

Dois efebos musculosos, apenas usando bermudas justas, disputavam a garupa duma pileca, enquanto um moleque mais novinho desfilava emproado num jumento submisso. Um gurizito, magro e desenvolto, passava para cá e para lá, entrando e saindo de casa em busca de pão. Vários tipos de pão. Saía de casa mordendo e depois partilhava com outros. Ora era um pão francês, ora um pão crioulo, ou ainda um pão doce. E a brincadeira continuava solta. As pipas esvoaçando alto eram o centro de todas as atenções.

Volto-me, encaro a rua e retomo a caminhada rumo a casa, resguardado pela sombrinha, puída de velha e a precisar de ser substituída.


Nota: A foto não é minha, foi recolhida na internet, sendo apenas figurativa.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

PIPA




Os gritos... os guinchos, as correrias...

O vaivém nervoso, febril... o entusiasmo da disputa, da tentativa de... tentativa?!... apenas a alegria.

O fio que se desenrola rápido da lata e o papagaio subindo alto, com a sua cauda trémula, reluzindo contra o azul celeste. O colorido garrido, geométrico, estalando como um berro no monocromático pálido céu da tarde ensolarada.

Enjaulado, sonho-me correndo junto com essas crianças. Sou a vida pulsando alegre naqueles membros franzinos e morenos. Agarrado às grades, eu definho enquanto voo... naquele papagaio que volteia no fundo da alma, estampado no céu sem fim.

Chinelos sacudidos com desleixo, para não atrapalhar a corrida. Mais tarde serão recolhidos desatentamente. Pés descalços voando sobre a terra, lama e água, perseguindo a queda errática... pulos, saltos, arranques e travadas súbitas.

Escalar muros, trepar árvores, tudo em alvoroço e excitação... na recolha do troféu! Cabeças erguidas. Olhares esgazeados fitando alto! Alto... Além...