JOSIAS
O rapaz iceberg.
Imenso... o mar imenso. Oceano. Vasto, a perder de vista, até
ao horizonte sempre longínquo.
Um imenso deserto aquático. Olhando...
infinito. Estático não. Além da inquietude nervosa da sua superfície agitando-se
num sobe e desce contínuo de ondulações maiores ou menores, aqui e ali
salpicadas de branca espuma, salgada. No entanto, no segredo do seu seio sempre
circulando, se renovando. Correntes levam as suas águas, mais ou menos frias,
por todo o globo. Trazem e levam, sem nada mudar, aparentemente, mas distribuindo
vida e fartura por todas as coordenadas.
A norte e a sul, bem nos topos. O
mar gelado. O imenso manto branco. A alva crosta, acima e abaixo da qual a vida
se faz, determinada, persistente, decidida a vencer e sobreviver.
Cobre-se duma camada espessa e
dura. Um mundo inóspito, onde seres improváveis encontram seu meio de subsistir
e levar adiante os ciclos da vida.
Mas nada é estático e duradouro.
As adversidades quebram o banco de gelo. O vai vem contínuo das ondas. O sobe e
desce das marés. A temperatura subindo e os ventos pressionando. No campo
uniforme, inóspito, a crosta gelada foi abrindo brechas, cavando abismos,
separando blocos. Rasgando o que era uno.
Das geleiras montanhosas desce
um veio imenso ao encontro do mar. Fragmentos dispersando-se em direcções
diversas. Icebergs vogando em rumos incertos. Divergindo. Separando-se. Afastando-se. Isolando-se.
O iceberg oculto.
Assim as vidas vão e vêm, num
fluxo irregular e inesperado. Por vezes adverso à nossa tranquilidade - muitas
vezes. Contrário ao nosso anseio de felicidade.
Um iceberg pode ser imenso acima
da superfície, mas ele é maior ainda abaixo dela. Assim é a tristeza que se
percebe nos olhos de Josias. Um olhar meigo e carinhoso, mas que guarda uma
imensa mágoa interior. A dor que cava fundo um negro pesado, que lhe avassala a
alma, que torna os seus passos uma caminhada sobre escolhos, um deambular cego
na escuridão dos medos moldados pela desolação do abandono.
Ser amado por piedade é cruel.
Um pai que não se importa. Uma
mãe que abandona a cria. Recolhido aqui, rejeitado além, perdido entre uns e
outros, sem saber os que irão permanecer ou em quem confiar. Uma vida à deriva,
procurando modelos e carinhos, mas recebendo olhares e afectos piedosos. Quando
não mesmo escusas disfarçadas, mas perceptíveis para uma jovem alma sofrida e
carente.
Derivar num mar negro com receio
de afundar no abismo. No poço sem luz onde só monstros roçam a pele, deixando o
rasto do pavor. Um odor amargo que se entranha fundo, abaixo da pele, abaixo da
forma, abaixo da carne, abaixo do nervo. E faz parte do ser. A travessia dum
vazio imenso – árido, deserto, doloroso, impiedoso -, perseguindo um horizonte
cada vez mais longínquo. Inalcançável.
O gelo profundo.
Escondendo abaixo da superfície
plácida a imensa dor de que é feita a sua existência. Uma dor que chega a ser
parte da sua identidade, que o define como é, como pessoa. Dor tão profunda que
por vezes nem ele se apercebe dela, mas está lá, sempre, constante.
Mas sendo diferente, não é
único. Muitos vogam por aí, perdidos, isolados, à deriva num mundo que os
ignora e assimila como iguais, como “mais um” na turba imensa de anónimos sem
nome, sem designação. Muitos meninos sem o calor do afago dos progenitores.
Muitos meninos icebergs.
O cristal de gelo.
Josias vai encontrando um aconchego
aqui, outro ali, mas não passam de puras emendas, num remendo que insiste em se
esgaçar e mostrar a falha profunda, dum vazio imenso. Insarável. Um parente que
o acolhe, mas não basta. Um amigo que inspira confiança, mas logo se vai. Uma
paixão que desperta anseios, mas se dilui em desilusão.
Sente-se acolhido e
momentaneamente feliz, mas logo o profundo abismo do imenso mar recorda-lhe a
sua condição de rapaz iceberg, de menino perdido, desgarrado dum afecto que
sempre lhe foi negado. E embora, tal como o gelo se dilui no oceano, ele ir-se-á
esquecendo na vida, mas o seu coração se manterá cristalizado. Uma gema
cintilante, enterrada no olvido.
Dedicado ao meu amigo Josafa Mariano, a pedido de quem o escrevi.
Dedicado ao meu amigo Josafa Mariano, a pedido de quem o escrevi.
7 comentários:
BELÍSSIMO...
NOS ABRE A MENTE...
PARA PENSAMENTOS MAIS PROFUNDOS...
belíssimo...
nos faz pensar mais profundamente...
abrindo os olhos...
O que dizer? Lindíssimo, como tudo que escreves. Forte, denso, profundo... Para fazer-nos pensar! Amo te!
Belíssimo mesmo! Imaginei até um filme do Terrence Malick!
Prosa poética. Muito bom. Parabéns.
Querido Man,
Você escreve textos como poesias, lindamente escrito e descrito. adorei!
Aliás, gosto de vê-lo escrevendo novamente, tão bem feito, palavras bem cuidadas, ricas. parabéns!
beijos cariocas
Sua escrita inebria!
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