sexta-feira, 14 de março de 2014

O SOMBRA



Presença sem sombra.

Saiu como sempre. Silencioso, fugidio, sem uma saudação ou sequer uma despedida. Dissimulado como uma serpente. Dissimulado como todos os cínicos. É sempre tudo suspeito e duvidoso a respeito dos seus movimentos ligeiros e comportamentos esquivos. Não é um enigma, é uma fraude ambulante.

Nunca trocando olhares com ninguém. Fala para baixo, como se as pedras o escutassem. Quase em surdina. Um homem sem glória, um homem sem história. Um homem que se realiza no não compromisso. Um cobarde.

Voga no seu minúsculo mundo de referências, pré-estabelecidas pelos padrões que ouviu duma educação tacanha e submissa, onde se refugia de qualquer empenho ou postura de carácter. Foge de desafios e evita frontalidade, como um animal protegido pela carapaça dura e impenetrável. Subjugação é o seu modo de esperar o momento de fuga.

Os movimentos são silenciosos e esquivos, como uma sombra pulando de sombra em sombra.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A BATALHA


No troar dos cascos, entre o tinir dos metais cruzando-se no choque da brutalidade... insana...

À frente vinha a cavalaria grosseira. Entre os urros de guerra e o tropel da correria e desatino, eu vi-te. Sabia que serias tu. Mas no furor, cego de insanidade, não tinhas percepção de nada. A imaturidade marcava-te como um estilete. Fatídico. Serias meu!

Acoitando-me na invisibilidade, usei a capa do alheamento para esconder-te o meu olhar; denunciaria-me. Enquanto te embriagavas na estúpida violência da batalha, eu espiava-te e estudava com deleite a tua nudez exposta. A tua fragilidade jovial. Como havia querido, posicionaste-te junto a mim, vulnerável, ao meu dispor. Eu, predador por natureza, assolapado, esperava o momento do bote. Pertencias-me, corcel tolo!

Todas as investidas dos teus correligionários, eu rechaçava com vigor, mas subtilmente. Dissimulado. Até que, quando me viste, já eu era um rugido golpeando-te com bestial vigor. Sucumbiste. Espanto no teu olhar desamparado. Eu saciava a monstruosidade do meu desejo.


sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

ESPERAVAM


A rua era longa. Avenida, no caso. Húmida, molhada, suja, fedorenta. Negra como a noite, que já havia descido sobre tudo, dispersando a turba feia e neurótica. Remy seguia atrás. Como sempre, atrás. Só via as costas do outro. Era o que ele mais via do seu parceiro – não se pode chamar companheiro a quem não acompanha. As costas. As costas que lhe lembravam o seu isolamento, a sua solidão.

A avenida parecia não ter fim. Como a noite parece não ter fim para quem não tem abrigo. O outro avançava no seu passo mecânico, lesto, imparável. Remy sentia-se o objecto em que se tornara. Uma coisa. Perdia a sua humanidade, para se tornar o distintivo que era apresentado e exibido. O troféu.

Quando chegaram detiveram-se. Como a noite parecia ter-se detido. A chuva também, suspensa, deixando que o asfalto secasse com o bafo estival e a passagem ocasional dum ou outro veículo. O silêncio pesava; era de chumbo. Cinzento e denso, embora maleável. Moldava-se aos corpos, às almas, à inquietude das ânsias que dominam os seres atormentados.

Vultos chegavam. Corpos carregando o cansaço dum dia de esforços. Posicionavam-se naquilo que designavam de lugar; o seu lugar. Em silêncio. Também em silêncio. E esperavam. Todos esperavam.